Por Karina Toledo, de Londres
Agência FAPESP – Caso as emissões de gases do efeito estufa
continuem crescendo às atuais taxas ao longo dos próximos anos, a
temperatura do planeta poderá aumentar até 4,8 graus Celsius neste
século – o que poderá resultar em uma elevação de até 82 centímetros no
nível do mar e causar danos importantes na maior parte das regiões
costeiras do globo.
O alerta foi feito pelos cientistas do Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da Organização das
Nações Unidas (ONU), que divulgaram no dia 27 de setembro, em
Estocolmo, na Suécia, a primeira parte de seu quinto relatório de
avaliação (AR5). Com base na revisão de milhares de pesquisas realizadas
nos últimos cinco anos, o documento apresenta as bases científicas da
mudança climática global.
De acordo com Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da
Universidade de São Paulo (USP) e um dos seis brasileiros que
participaram da elaboração desse relatório, foram simulados quatro
diferentes cenários de concentrações de gases de efeito estufa,
possíveis de acontecer até o ano de 2100 – os chamados “Representative
Concentration Pathways (RCPs)”.
“Para fazer a previsão do aumento da temperatura são necessários dois
ingredientes básicos: um modelo climático e um cenário de emissões. No
quarto relatório (
divulgado em 2007) também foram simulados
quatro cenários, mas se levou em conta apenas a quantidade de gases de
efeito estufa emitida. Neste quinto relatório, nós usamos um sistema
mais completo, que leva em conta os impactos dessas emissões, ou seja, o
quanto haverá de alteração no balanço de radiação do sistema
terrestre”, explicou Artaxo, que está em Londres para a
FAPESP Week London, onde participou de um
painel sobre mudança climática.
O balanço de radiação corresponde à razão entre a quantidade de
energia solar que entra e que sai de nosso planeta, indicando o quanto
ficou armazenada no sistema terrestre de acordo com as concentrações de
gases de efeito estufa, partículas de aerossóis emitidas e outros
agentes climáticos.
O cenário mais otimista prevê que o sistema terrestre armazenará 2,6
watts por metro quadrado (W/m2) adicionais. Nesse caso, o aumento da
temperatura terrestre poderia variar entre 0,3 °C e 1,7 °C de 2010 até
2100 e o nível do mar poderia subir entre 26 e 55 centímetros ao longo
deste século.
“Para que esse cenário acontecesse, seria preciso estabilizar as
concentrações de gases do efeito estufa nos próximos 10 anos e atuar
para sua remoção da atmosfera. Ainda assim, os modelos indicam um
aumento adicional de quase 2 °C na temperatura – além do 0,9 °C que
nosso planeta já aqueceu desde o ano 1750”, avaliou Artaxo.
O segundo cenário (RCP4.5) prevê um armazenamento de 4,5 W/m2. Nesse
caso, o aumento da temperatura terrestre seria entre 1,1 °C e 2,6 °C e o
nível do mar subiria entre 32 e 63 centímetros. No terceiro cenário, de
6,0 W/m2, o aumento da temperatura varia de 1,4 °C até 3,1 °C e o nível
do mar subiria entre 33 e 63 centímetros.
Já o pior cenário, no qual as emissões continuam a crescer em ritmo
acelerado, prevê um armazenamento adicional de 8,5 W/m2. Em tal
situação, segundo o IPCC, a superfície da Terra poderia aquecer entre
2,6 °C e 4,8 °C ao longo deste século, fazendo com que o nível dos
oceanos aumente entre 45 e 82 centímetros.
“O nível dos oceanos já subiu em média 20 centímetros entre 1900 e
2012. Se subir outros 60 centímetros, com as marés, o resultado será uma
forte erosão nas áreas costeiras de todo o mundo. Rios como o Amazonas,
por exemplo, sofrerão forte refluxo de água salgada, o que afeta todo o
ecossistema local”, disse Artaxo.
Segundo o relatório AR5 do IPCC, em todos os cenários, é muito
provável (90% de probabilidade) que a taxa de elevação dos oceanos
durante o século 21 exceda a observada entre 1971 e 2010. A expansão
térmica resultante do aumento da temperatura e o derretimento das
geleiras seriam as principais causas.
O aquecimento dos oceanos, diz o relatório, continuará ocorrendo
durante séculos, mesmo se as emissões de gases estufa diminuírem ou
permanecerem constantes. A região do Ártico é a que vai aquecer mais
fortemente, de acordo com o IPCC.
Segundo Artaxo, o aquecimento das águas marinhas tem ainda outras
consequências relevantes, que não eram propriamente consideradas nos
modelos climáticos anteriores. Conforme o oceano esquenta, ele perde a
capacidade de absorver dióxido de carbono (CO2) da atmosfera. Se a
emissão atual for mantida, portanto, poderá haver uma aceleração nas
concentrações desse gás na atmosfera.
“No relatório anterior, os capítulos dedicados ao papel dos oceanos
nas mudanças climáticas careciam de dados experimentais. Mas nos últimos
anos houve um enorme avanço na ciência do clima. Neste quinto
relatório, por causa de medições feitas por satélites e de observações
feitas com redes de boias – como as do
Projeto Pirata que a FAPESP financia no Atlântico Sul –, a confiança sobre o impacto dos oceanos no clima melhorou muito”, afirmou Artaxo.
Acidificação dos oceanos
Em todos os cenários previstos no quinto relatório do IPCC, as
concentrações de CO2 serão maiores em 2100 em comparação aos níveis
atuais, como resultado do aumento cumulativo das emissões ocorrido
durante os séculos 20 e 21. Parte do CO2 emitido pela atividade humana
continuará a ser absorvida pelos oceanos e, portanto, é “virtualmente
certo” (99% de probabilidade) que a acidificação dos mares vai aumentar.
No melhor dos cenários – o RCP2,6 –, a queda no pH será entre 0,06 e
0,07. Na pior das hipóteses – o RCP8,5 –, entre 0,30 e 0,32.
“A água do mar é alcalina, com pH em torno de 8,12. Mas quando
absorve CO2 ocorre a formação de compostos ácidos. Esses ácidos
dissolvem a carcaça de parte dos microrganismos marinhos, que é feita
geralmente de carbonato de cálcio. A maioria da biota marinha sofrerá
alterações profundas, o que afeta também toda a cadeia alimentar”,
afirmou Artaxo.
Ao analisar as mudanças já ocorridas até o momento, os cientistas do
IPCC afirmam que as três últimas décadas foram as mais quentes em
comparação com todas as anteriores desde 1850. A primeira década do
século 21 foi a mais quente de todas. O período entre 1983 e 2012 foi
“muito provavelmente” (90% de probabilidade) o mais quente dos últimos
800 anos. Há ainda cerca de 60% de probabilidade de que tenha sido o
mais quente dos últimos 1.400 anos.
No entanto, o IPCC reconhece ter havido uma queda na taxa de
aquecimento do planeta nos últimos 15 anos – passando de 0,12 °C por
década (quando considerado o período entre 1951 e 2012) para 0,05°C
(quando considerado apenas o período entre 1998 e 2012).
De acordo com Artaxo, o fenômeno se deve a dois fatores principais: a
maior absorção de calor em águas profundas (mais de 700 metros) e a
maior frequência de fenômenos La Niña, que alteram a taxa de
transferência de calor da atmosfera aos oceanos. “O processo é bem claro
e documentado em revistas científicas de prestígio. Ainda assim, o
planeta continua aquecendo de forma significativa”, disse.
Há 90% de certeza de que o número de dias e noites frios diminuíram,
enquanto os dias e noites quentes aumentaram na escala global. E cerca
de 60% de certeza de que as ondas de calor também aumentaram. O
relatório diz haver fortes evidências de degelo, principalmente na
região do Ártico. Há 90% de certeza de que a taxa de redução da camada
de gelo tenha sido entre 3,5% e 4,1% por década entre 1979 e 2012.
As concentrações de CO2 na atmosfera já aumentaram mais de 20% desde
1958, quando medições sistemáticas começaram a ser feitas, e cerca de
40% desde 1750. De acordo com o IPCC, o aumento é resultado da atividade
humana, principalmente da queima de combustíveis fósseis e do
desmatamento, havendo uma pequena participação da indústria cimenteira.
Para os cientistas há uma “confiança muito alta” (nove chances em
dez) de que as taxas médias de CO2, metano e óxido nitroso do último
século sejam as mais altas dos últimos 22 mil anos. Já mudanças na
irradiação solar e a atividade vulcânica contribuíram com uma pequena
fração da alteração climática. É “extremamente provável” (95% de
certeza) de que a influência humana sobre o clima causou mais da metade
do aumento da temperatura observado entre 1951 e 2010.
“Os efeitos da mudança climática já estão sendo sentidos, não é algo
para o futuro. O aumento de ondas de calor, da frequência de furacões,
das inundações e tempestades severas, das variações bruscas entre dias
quentes e frios provavelmente está relacionado ao fato de que o sistema
climático está sendo alterado”, disse Artaxo.
Impacto persistente
Na avaliação do IPCC, muitos aspectos da mudança climática vão
persistir durante muitos séculos mesmo se as emissões de gases estufa
cessarem. É “muito provável” (90% de certeza) que mais de 20% do CO2
emitido permanecerá na atmosfera por mais de mil anos após as emissões
cessarem, afirma o relatório.
“O que estamos alterando não é o clima da próxima década ou até o fim
deste século. Existem várias publicações com simulações que mostram
concentrações altas de CO2 até o ano 3000, pois os processos de remoção
do CO2 atmosférico são muito lentos”, contou Artaxo.
Para o professor da USP, os impactos são significativos e fortes, mas
não são catastróficos. “É certo que muitas regiões costeiras vão sofrer
forte erosão e milhões de pessoas terão de ser removidas de onde vivem
hoje. Mas claro que não é o fim do mundo. A questão é: como vamos nos
adaptar, quem vai controlar a governabilidade desse sistema global e de
onde sairão recursos para que países em desenvolvimento possam construir
barreiras de contenção contra as águas do mar, como as que já estão
sendo ampliadas na Holanda. Quanto mais cedo isso for planejado, menores
serão os impactos socioeconômicos”, avaliou.
Os impactos e as formas de adaptação à nova realidade climática serão
o tema da segunda parte do quinto relatório do IPCC, previsto para ser
divulgado em janeiro de 2014. O documento contou com a colaboração de
sete cientistas brasileiros. Outros 13 brasileiros participaram da
elaboração da terceira parte do AR5, que discute formas de mitigar a
mudança climática e deve sair em março.
De maneira geral, cresceu o número de cientistas vindos de países em
desenvolvimento, particularmente do Brasil, dentro do IPCC. “O Brasil é
um dos países líderes em pesquisas sobre mudança climática atualmente.
Além disso, o IPCC percebeu que, se o foco ficasse apenas nos países
desenvolvidos, informações importantes sobre o que está acontecendo nos
trópicos poderiam deixar de ser incluídas. E é onde fica a Amazônia, um
ecossistema-chave para o planeta”, disse Artaxo.
No dia 9 de setembro, o Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) divulgou o
sumário executivo de seu primeiro Relatório de Avaliação Nacional
(RAN1). O documento, feito nos mesmos moldes do relatório do IPCC,
indica que no Brasil o aumento de temperatura até 2100 será entre 1 ° e 6
°C, em comparação à registrada no fim do século 20. Como consequência,
deverá diminuir significativamente a ocorrência de chuvas em grande
parte das regiões central, Norte e Nordeste do país. Nas regiões Sul e
Sudeste, por outro lado, haverá um aumento do número de precipitações.
“A humanidade nunca enfrentou um problema cuja relevância chegasse
perto das mudanças climáticas, que vai afetar absolutamente todos os
seres vivos do planeta. Não temos um sistema de governança global para
implementar medidas de redução de emissões e verificação. Por isso, vai
demorar ainda pelo menos algumas décadas para que o problema comece a
ser resolvido”, opinou Artaxo.
Para o pesquisador, a medida mais urgente é a redução das emissões de
gases de efeito estufa – compromisso que tem de ser assumido por todas
as nações. “A consciência de que todos habitamos o mesmo barco é muito
forte hoje, mas ainda não há mecanismos de governabilidade global para
fazer esse barco andar na direção certa. Isso terá que ser construído
pela nossa geração”, concluiu.