Em 25 anos, Brasil conviverá com calor extremo, falta d’água e de
energia, queda na produção agropecuária, doenças e prejuízos por
ressacas, sugere o maior estudo já feito sobre impactos do clima
Daqui a apenas 25 anos, no tempo de vida da maior parte dos leitores
deste texto, o Brasil poderá ter seu cotidiano e sua economia
transformados – para pior – pela mudança do clima. Secas violentas
impedirão o parque hidrelétrico de gerar energia para atender à
população e tornarão fúteis investimentos bilionários em barragens na
Amazônia. Culturas como a soja poderão ter redução de até 39% em sua
área. A elevação do nível do mar deixará exposto a alto risco de
destruição um patrimônio imobiliário de até R$ 124 bilhões apenas na
cidade do Rio de Janeiro. Mais idosos morrerão por ondas de calor,
especialmente no Norte e no Nordeste.
As más notícias vêm do maior estudo já realizado sobre impactos da
mudança climática no Brasil. Trata-se do “Brasil 2040 – Alternativas de
Adaptação às Mudanças Climáticas”, encomendado pela Secretaria de
Estudos Estratégicos da Presidência da República a diversos grupos de
pesquisa do País e divulgado nesta quinta-feira (29/10), sem alarde, na
página do extinto ministério na internet. O Ministério do Meio Ambiente,
que herdara o estudo após a demissão de seus idealizadores pela SAE em
março, se preparava para publicá-lo nos próximos dias.
O trabalho busca entender como o clima poderá variar no Brasil nos
próximos 25, 55 e 85 anos, de forma a embasar políticas públicas de
adaptação em cinco grandes áreas: saúde, recursos hídricos, energia,
agricultura e infraestrutura (costeira e de transportes).
Os cenários para os diversos setores foram construídos a partir de
dois modelos climáticos globais usados pelo IPCC, o painel do clima das
Nações Unidas, e regionalizados para o Brasil pelo Inpe (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais).
Esses modelos são grandes simulações da Terra, onde são incluídas
variáveis como vento, oceanos e florestas. Alimentando-os com dados
sobre a taxa de emissões de gases de efeito estufa, eles conseguem
estimar como o clima vai variar nas próximas décadas ou séculos.
Os modelos do IPCC têm a vantagem de enxergar o planeta inteiro,
porém são “míopes”: eles dividem o mundo em células de 200 km x 200 km,
grandes demais para permitir investigar variações climáticas dentro de
uma região geográfica menor ou um país. O que o Inpe fez foi usar dois
desses modelos e aumentar sua resolução para 20 km x 20 km, dando um
zoom na América do Sul. Isso permitiu montar, pela primeira vez,
cenários detalhados de chuva e temperatura para as próximas décadas no
Brasil.
Dois modelos foram utilizados: o britânico HadGEM-2 e o japonês
Miroc-5. Por uma questão de personalidade matemática, por assim dizer,
ambos “enxergam” o clima no futuro de jeitos diferentes: o britânico
tende a apontar um mundo mais seco no futuro, enquanto o japonês vê um
mundo mais chuvoso.
Cada modelo, por sua vez, foi rodado em dois cenários de emissão de
gases de efeito estufa do IPCC, as chamadas “trajetórias representativas
de concentração”: o RCP 8,5, que assume que a humanidade não fará nada
para controlar as emissões de CO2; e o RCP 4,5, que assume esforços
limitados de controle de emissões, mas ainda fora da trajetória dos 2
oC considerados o limite máximo “seguro” de aquecimento.
O que a modelagem revelou foi que, em todos os cenários, o Brasil de
2040 será um país mais quente e mais seco. As temperaturas médias nos
meses mais quentes do ano podem subir até 3
oC em relação às
médias atuais no Centro-Oeste. A região Sul tende a ficar mais chuvosa,
enquanto o Sudeste, o Centro-Oeste e partes do Norte e Nordeste teriam
reduções as chuvas, em especial nos meses de verão.
Falta d’água permanente
O primeiro efeito disso é uma redução na vazão dos rios que abastecem
a maior parte da população brasileira, como mostraram os estudos sobre
recursos hídricos do “Brasil 2040”.
Um grupo liderado por Francisco de Assis Souza e Eduardo Martins, da
Universidade Federal do Ceará e da Fundação Cearense de Meteorologia,
usou os dados de chuva para construir um modelo de vazão – não é
possível estimar quanto um rio enche ou seca apenas olhando para a média
de chuvas.
O resultado é dramático para quem acha que o Sudeste do Brasil já
sofreu o suficiente com falta d’água e ameaça de racionamento de energia
nos últimos três anos: no melhor cenário, vários rios de Minas Gerais,
São Paulo, Goiás, Tocantins, Bahia e Pará terão reduções de vazão de 10%
a 30%.
Transpostos para as usinas hidrelétricas, os dados de vazão trazem um
desafio para o setor de energia no Brasil: as mais importantes usinas
do País – Furnas, Itaipu, Sobradinho e Tucuruí – teriam reduções de
vazão de 38% a 57% no pior cenário.
Na Amazônia, região eleita pelo governo a nova fronteira da
hidroeletricidade no País, as quedas também seriam significativas, como
adiantou o OC em abril: a vazão de Belo Monte cairia de 25% a 55%, a de
Santo Antônio, de 40% a 65%, e a da usina planejada de São Luís do
Tapajós, de 20% a 30%.
Hidrelétricas em colapso
À exceção de São Luís, a maioria das novas usinas na Amazônia é a fio
d’água, ou seja, não possui grande reservatório. Isso significa que seu
fator de capacidade, ou seja, a quantidade de energia constante gerada
ao longo do ano, é reduzido, já que a vazão dos rios amazônicos varia
enormemente entre a estação da seca e a da chuva. Belo Monte, por
exemplo, tem um fator de capacidade de cerca de 40%, que, reduzido à
metade, daria à hidrelétrica de R$ 30 bilhões um fator de capacidade
menor que o de usinas eólicas – para as quais os planejadores
energéticos brasileiros e a presidente Dilma Rousseff torcem o nariz, já
que essas usinas não são capazes de gerar “energia firme” nos períodos
sem vento. No total, a geração hidrelétrica cai de 8% a 20% no País.
“O planejamento energético precisa ser revisto urgentemente à luz dos
dados do ‘2040’, sob pena de a sociedade enterrar bilhões de reais em
projetos que não se pagam”, disse Carlos Rittl, secretário-executivo do
Observatório do Clima (OC).
Os dados de Martins e Souza foram utilizados por uma equipe de
pesquisadores da Coppe-URFJ liderada por Roberto Schaeffer para analisar
o que acontece com a eletricidade do Brasil nos próximos 25 anos caso
se confirmem os cenários de mudança do clima.
O grupo usou em sua análise, por sua vez, dois modelos
computacionais: um deles leva em conta a matriz energética, a demanda
por eletricidade e o crescimento do PIB para estimar o comportamento do
sistema elétrico brasileiro – que fontes crescem na matriz, que fontes
diminuem, de acordo com o custo e o fator de capacidade. O outro modelo
simula como as usinas hidrelétricas e termelétricas operam no mundo real
de acordo com a disponibilidade de água nos reservatórios.
A principal conclusão do estudo de Schaeffer e colegas é filosófica: o
planejamento elétrico no Brasil não poderá mais ser feito como vem
sendo. Hoje, os responsáveis pelo setor no governo trabalham segundo a
filosofia do “estado estacionário” de variáveis climáticas, ou seja, o
comportamento dos rios no futuro seguirá o comportamento do passado.
“Não dá mais para fazer isso. O futuro não vai obrigatoriamente repetir o passado”, disse Schaeffer ao OC.
A análise dos pesquisadores mostra que, em todos os cenários
analisados, há uma queda na vazão das principais bacias hidrográficas
brasileiras, que empurra o sistema elétrico para uma situação de
desequilíbrio estrutural: o sistema não dá conta de atender a demanda,
provocando cortes de carga – em português claro, apagões.
Sem medidas de corte de emissões (ou seja, no RCP 8,5), no pior
cenário, a vazão dos reservatórios cai 30% e o risco de déficit em
alguns anos se aproxima de 100% – a margem considerada “segura” pelo
governo para evitar apagões é de 5%. No melhor cenário, a queda de vazão
das hidrelétricas chega a 10%, e o risco de déficit, a 60% em alguns
anos. O custo de operação do sistema, que leva em conta inclusive o
acionamento de térmicas, sobe em oito vezes no melhor cenário e em 16,7
vezes no pior.
A consequência do colapso das hidrelétricas é o aumento do uso de
carvão mineral e gás natural na matriz brasileira, o que tanto aumenta o
custo de operação do sistema quanto as emissões de carbono, agravando
ainda mais o efeito estufa. Outra consequência pode ser o retorno das
usinas com grandes reservatórios, em especial na região Sul, onde vai
chover mais.
Os resultados surpreenderam até os pesquisadores. “Se isso acontecer, o País para se não tiver um seguro”, disse Schaeffer.
Parte desse “seguro” não depende apenas do Brasil: é o corte de
emissões dentro de um acordo global do clima. Segundo o estudo, somente o
custo de expansão do sistema elétrico cairia em R$ 122 bilhões entre o
cenário RCP 8,5 (sem mitigação da mudança do clima) e o cenário RCP 4,5
(com mitigação).
O “seguro” cabe ao País contratar, segundo o pesquisador, é a
adaptação do sistema. E a melhor maneira de adaptar, curiosamente, é
reduzindo emissões: aumentando em muito a eficiência energética e o uso
de renováveis, de modo a reduzir a dependência de termelétricas fósseis e
de hidrelétricas, e colocando um preço nas emissões de carbono – não
necessariamente uma taxa, Schaeffer apressa-se a dizer.
Os dados de energia e recursos hídricos do “Brasil 2040” foram
apresentados ao governo federal ao longo do ano e recebidos com algumas
críticas – o estudo da UFCE foi considerado “alarmista” pela própria
SAE.
“Uma crítica que a gente pode receber é que há incerteza. Mas também
há incerteza sobre se você vai ficar doente, e nem por isso você deixa
de fazer um plano de saúde”, compara Roberto Schaeffer.
Mico no Mapitoba
Os relatórios sobre agricultura, elaborados por equipes da Embrapa e
do Agroicone, também devem causar arrepios no governo. Eles mostram que a
maior aposta da ministra Kátia Abreu (Agricultura) para a futura
expansão da produção no País, o chamado Mapitoba (uma zona de cerrados
entre Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia) pode virar um mico na mão de
investidores.
Uma das análises aponta para a tendência de desvalorização das terras
por decorrência das mudanças na produção e aumento do risco climático.
Em Pernambuco, as terras podem perder até 43% do seu valor. No Pará, a
perda pode ser de até 36%.
No Estado do Maranhão, as perdas podem variar de 2% a 16%, no
Tocantins de 14% a 26% e de 3% a 14% no Piauí. Um dos cenários aponta
valorização das terras na Bahia, mas esse Estado também pode ter perdas
de 5% no valor das terras.
Os impactos das mudanças do clima na agricultura podem levar a perdas
de área agriculturável em quase todas as culturas avaliadas – o efeito
mais grave deve recair sobre a área de cultivo de soja, com perdas de
até 39%. O feijão, arroz e milho safrinha podem ter redução de área
cultivável de 26%, 24% e 28%, respectivamente.
No caso da cana-de-açúcar, as áreas cultiváveis podem aumentar, por
ser um gênero que precisa de calor, em especial para a produção de
etanol. Porém, o cultivo deve migrar para regiões que hoje são mais
frias. A produção de mandioca deve sair do Nordeste, muito seco, e
migrar para áreas de Cerrado e Amazônia. O caupi, ou feijão-de- corda,
já está migrando do Nordeste para o Centro-Oeste.
O estudo avalia também que a região amazônica pode ser afetada por
diversas queimadas, gerando problemas para a produção no Brasil central e
alterando o regime de chuvas e a circulação de massas de ar. No
semiárido, a escassez de recursos hídricos pode se agravar.
A pesquisa sugere que a própria dinâmica do mercado vai ser uma das
medidas de adaptação: a redução de áreas aptas para produção deve afetar
os preços das commodities agrícolas; as regiões de maior aptidão
produtiva devem responder positivamente, enquanto outras regiões deverão
perder produção; haverá impactos sobre os preços ao produtor e ao
consumidor final; novos equilíbrios de oferta, demanda e preços serão
gerados, influenciando na produção.
Calor
O capítulo de saúde, que não está entre os relatórios
disponibilizados pela SAE, mas ao qual o OC teve acesso, avaliou apenas
os impactos das ondas de calor sobre taxas de mortalidade. Os efeitos
são heterogêneos, de acordo com a faixa etária, clima regional e as
condições de saneamento. Os idosos são o grupo populacional mais
vulnerável, enquanto na avaliação por região, Norte e Nordeste devem ser
as mais afetadas.
No Tocantins, por exemplo, o aumento do número de mortes entre idosos
pode chegar a 9%, em decorrência de doenças respiratórias agravadas por
ondas de calor. Rio Grande do Norte e Paraíba também devem ter aumento
superior a 5% nos índices de mortalidade no mesmo grupo.
“Temos o dado demográfico: a população vai envelhecer. Então, o
Brasil vai se tornar mais vulnerável às mudanças do clima”, diz o
coordenador do estudo, José Feres, do IPEA (Instituto de Pesquisas
Econômicas Aplicadas).
O estudo também alerta para a disseminação de doenças infecciosas
endêmicas, que podem aumentar de acordo com as condições climáticas,
como malária, dengue e leptospirose. Outra preocupação são eventos
climáticos extremos como tempestades, ocasionando inundações,
afogamentos, desabamentos, aglomerações, entre outros. “Nossa principal
recomendação é a criação de um sistema de alerta para ondas de calor e
outros eventos climáticos extremos. É uma medida simples, mas que o
Brasil ainda não tem”, diz Feres.
Estradas ruins
A avaliação dos impactos sobre a infraestrutura de transportes traz a
informação que os brasileiros que viajam de carro ou ônibus já sabem:
nossa malha rodoviária já é ruim. Mas pode piorar. O estresse por chuvas
intensas, acúmulo de umidade e altas temperaturas demanda altos
investimentos em adaptação.
Combinando informações sobre sinalização, qualidade do asfalto e
condições das rodovias, elaborou-se o Índice de Vulnerabilidade da
Infraestrutura Rodoviária (IVIR). Quanto mais alto, mais vulneráveis são
as rodovias. Observando os mapas, é possível comparar o número de
rodovias vulneráveis hoje e em 2040.
As regiões Sudeste e Sul, que hoje já apresentam estradas em boas
condições, serão as menos afetadas. Atualmente, apenas oito estados
apresentam segmentos vulneráveis, contra 22 estados no cenário futuro,
além do Distrito Federal. A região Nordeste é campeã em vulnerabilidade,
em especial no litoral – tanto pela possibilidade de aumento de
temperaturas quanto pelas condições das rodovias.
“No Brasil, não há um banco de dados consistente sobre os efeitos de
eventos climáticos na infraestrutura rodoviária e não há indícios de que
essa situação irá mudar no curto prazo”, diz o relatório. “Tal banco de
dados é importante para determinar a resiliência atual e para prover a
base para estudos sobre impactos relacionados ao clima futuros.”
A análise ressalta que os custos de adaptação e reparos podem ser
muito superiores à economia feita com obras mais baratas, que não serão
satisfatórias em médio e longo prazo. Também recomenda o desenvolvimento
de estudos sobre o risco de afogamento da infraestrutura rodoviária em
decorrência de chuvas fortes, em todo o território nacional.
“São soluções de engenharia tradicional, mas que sairão caríssimas
por causa do tamanho da rede”, disse Sérgio Margulis, economista carioca
que idealizou o “Brasil 2040”.
Olha a onda
A equipe do engenheiro Wilson Cabral Jr., do ITA (Instituto
Tecnológico de Aeronáutica) também criou um índice de vulnerabilidade
para a infraestrutura costeira e portuária do Brasil, na tentativa de
estimar o que aconteceria com o litoral em caso de elevação do nível do
mar conforme previsto pelo IPCC.
Os pesquisadores tiveram de lidar com um problema adicional: a
absoluta falta de informações sobre como o nível do mar vem subindo no
País nas últimas décadas e sobre como as ondas vêm ficando mais fortes.
“A rede de marégrafos no Brasil é incipiente, e a de ondógrafos mais
ainda”, disse Márcia Oliveira, coordenadora de Gerenciamento Costeiro do
Ministério do Meio Ambiente.
Segundo Cabral, nem mesmo as bases de dados usadas para estimar a
altimetria (a altura do terreno acima do nível do mar) e a batimetria (o
perfil do fundo oceânico), dois dados que precisam ser combinados para
informar a elevação da lâmina d’água e o risco de inundação, conversam
entre si. Há um erro sistemático nas medições que os pesquisadores não
conseguem nem mesmo estimar.
Cabral e seu aluno Vítor Zanetti usaram, então, as projeções de nível
do mar do IPCC para estimar risco de alagamento e ressacas em Santos e
no Rio de Janeiro. Outro grupo, da USP, estimou o impacto nos portos e
as medidas de adaptação necessárias.
Os resultados mostram que quase todos os portos do País precisam já
hoje de medidas de adaptação, seja para aumentar a chamada “borda
livre”, o espaço seco entre o cais e a água, seja para aumentar o calado
por causa de assoreamento. O custo dessas medidas, que inclui a
construção de quebra-mares, foi calculado em R$ 7 bilhões – mais do que o
PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) investiu em portos.
Para Santos e para o Rio, foram mapeadas as zonas em risco alto e
muito alto de deslizamento, ressaca e inundação, o que inclui hospitais e
a infraestrutura de transporte público, além de estações de tratamento
de esgotos. A Linha Vermelha, no Rio, está longe da praia, mas deve
alagar com frequência ainda maior devido ao efeito de “barragem” que o
mar mais alto exerce sobre os canais que a rodovia cruza. O quadro que
emerge nas duas cidades é o de colapso urbano em caso de ressacas e
inundações muito graves no futuro. Apenas no Rio, o patrimônio
imobiliário sob alto risco foi estimado em R$ 124 bilhões.
“É de se esperar que tomadores de decisão, em seus diversos níveis,
tenham conhecimento destes estudos e resultados e possam utilizá-los em
abordagens de planejamento de curto, médio e longo prazos”, escreveram
os pesquisadores.
Instituto Socioambiental via JC Notícias