Por Karina Toledo
Agência FAPESP – Todos os cenários de mitigação dos impactos
das mudanças climáticas apresentadas no domingo (13/04) pelos cientistas
do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla
em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU), passam pela redução
das emissões de gases do efeito estufa e por investimentos em
tecnologias capazes de sequestrar o carbono já emitido.
Se a humanidade quiser impedir que a temperatura do planeta suba, até
o fim do século, mais do que 2 graus Celsius em relação ao período
pré-industrial – evitando assim impactos mais significativos –, será
necessário reduzir as emissões globais de gases de efeito estufa entre
40% e 70% em relação a 2010, até meados do século, e para quase zero até
2100.
As informações são do Sumário para Formuladores de Políticas Públicas do relatório “Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change”, elaborado pelo terceiro grupo de trabalho (WG3, na sigla em inglês) do IPCC.
Para os especialistas, a redução das emissões envolve o investimento
em energias renováveis, o aumento da eficiência no uso de recursos e a
redução do consumo insustentável.
Uma meta ambiciosa seria reduzir em torno de 1,7% o consumo de bens e
produtos até 2030, 3,4% até 2050 e 4,8% até 2100 – o que equivaleria a
uma redução de 0,06% por ano no crescimento do consumo ao longo do
século.
O documento – que corresponde à terceira parte do relatório de
avaliação (AR5) do Painel – aponta ainda que seria necessário um
investimento global em torno de US$ 177 bilhões por ano no
desenvolvimento de tecnologias que permitam reduzir as emissões e
sequestrar o carbono já emitido.
“Mas essas mudanças trazem uma série de benefícios adicionais que
precisam ser computados nessa conta. Podem trazer melhoria da qualidade
de vida pela redução da poluição atmosférica e disponibilizar recursos
de forma mais eficiente para as pessoas. Os benefícios da mitigação
podem até superar as perdas com a redução do consumo ao longo do tempo”,
afirmou Mercedes Maria da Cunha Bustamante, professora do Departamento
de Ecologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de
Brasília (UnB) e um dos três membros brasileiros da equipe de cientistas
que elaborou o sumário.
Em entrevista à Agência FAPESP, Bustamante falou sobre como o
documento deverá ajudar nas negociações sobre o clima nos próximos anos,
quais são as expectativas de um acordo global para a redução de
emissões e como ações individuais podem ajudar no processo de mitigação.
Agência FAPESP – Qual é a sua linha de pesquisa na UnB?
Mercedes Maria da Cunha Bustamante – Nosso grupo de trabalho se
dedica a estudar os impactos da conversão de sistemas naturais, como a
Amazônia e o Cerrado, sobre o funcionamento dos ecossistemas. Há quase
20 anos tentamos entender como funcionam os ciclos de carbono e de
nitrogênio nesses sistemas naturais e de que forma esses ciclos são
impactados pelas mudanças de uso do solo. Também buscamos avaliar o
impacto da biodiversidade para o funcionamento desses ecossistemas.
Agência FAPESP – Desde quando colabora com os trabalhos do IPCC?
Bustamante – Eu já havia colaborado no relatório anterior,
publicado em 2007, mas apenas como revisora. Quando se iniciou o
processo de definição dos autores do terceiro grupo de trabalho do AR5
fui convidada para coordenar – ao lado de Pete Smith, do Reino Unido – o
capítulo sobre Agriculture, Forestry and Other Land Uses [Agricultura, silvicultura e outros usos da terra].
São ao todo 16 capítulos que compõem o relatório do WG3 e quase 10 mil
referências bibliográficas. O trabalho teve início há pouco mais de três
anos.
Agência FAPESP – Na primeira parte do AR5, cientistas já
haviam alertado que, caso as emissões de gases do efeito estufa
continuem crescendo às atuais taxas ao longo dos próximos anos, a
temperatura do planeta poderá aumentar até 4,8ºC. Qual é a proposta
dessa terceira parte do AR5 para evitar que isso aconteça?
Bustamante – Com base nos modelos desenvolvidos pelo WG1 – que
estimou o aumento da temperatura em cada diferente cenário de
concentração de gases de efeito estufa – calculou-se o quanto cada setor
da economia precisa contribuir para a mitigação. A meta é manter o
aumento da temperatura em até 2 ºC até o fim do século. Cerca de 900
cenários foram elaborados buscando avaliar como ações de mitigação em um
determinado setor impactam os demais. Por exemplo, como a terra é um
recurso limitado, se eu aumentar muito a área de floresta, diminui a
área para produção de alimentos ou para plantação de culturas voltadas à
bioenergia. Com base nesses cenários, elaboramos um “mapa” com várias
saídas possíveis. Todas elas passam por reduzir as emissões e aumentar
medidas que promovam sequestro de carbono. A mensagem principal é: não
dá para postergar mais essas ações necessárias. Não é um processo de
tomada de decisão simples, é realmente complexo e multissetorial. Nenhum
setor sozinho vai dar conta de fazer as alterações necessárias. Vai
exigir um planejamento das interações entre os setores.
Agência FAPESP – Como é possível fazer o sequestro de carbono da atmosfera?
Bustamante – Uma medida já disponível, que pode ser usada em um
primeiro momento para abater as emissões, é o plantio de árvores em
regiões onde antes não havia grandes extensões florestais. As árvores
incorporam o dióxido de carbono (CO2) na biomassa, mas claro que essa
medida tem uma limitação, pois as árvores não crescem indefinidamente.
Outra forma amplamente discutida no relatório são tecnologias de captura
que fazem o bombeamento de CO2 da atmosfera para camadas geológicas
mais profundas. Algumas dessas tecnologias são associadas a processos
industriais e, antes de o sistema de energia emitir o carbono, o gás já é
capturado e bombeado para esses reservatórios. Mas ainda há uma série
de desenvolvimentos tecnológicos a serem feitos. Os modelos indicam que,
quanto mais tempo a gente demorar para iniciar as ações de mitigação,
mais dependente seremos dessas estratégias de captura de carbono. Há
vários caminhos, mas quanto mais tempo demorar para começarmos, mais
difícil e mais caro será.
Agência FAPESP – Qual é a proposta do documento para a redução das emissões de gases do efeito estufa?
Bustamante – Falou-se muito em energias renováveis, pois um dos
grandes vetores das emissões é a queima de combustíveis fósseis. Isso
tem uma repercussão no nosso capítulo [Agricultura, Silvicultura e outros usos da terra]
em razão do papel que a bioenergia tem na questão das energias
renováveis. Se for necessário destinar mais terra para plantar culturas
voltadas à produção de bioenergia, isso afetaria a configuração de uso
da terra. No capítulo sobre suprimentos de energia é mencionada a
questão da energia nuclear, mas é uma alternativa que encontra uma série
de barreiras e riscos associados ao processamento do material,
funcionamento das usinas e a possibilidade de acidentes nucleares.
Apesar de ser uma alternativa de baixo carbono, vem cercada de vários
questionamentos acerca da segurança e do funcionamento desse tipo de
instalação. Uma questão importante que o relatório apresenta é a
necessidade de se aumentar a eficiência energética e a redução de
consumo.Para todos os capítulos, a redução de consumo é um aspecto
importante. Atualmente, parte significativa da produção agrícola é
perdida ao longo da cadeia de produção de alimentos, por exemplo.
Algumas perdas são inevitáveis, mas existe muito desperdício. O ideal
seria optar por alimentos produzidos de forma mais eficiente e adotar
pequenas alterações na dieta que têm impacto positivo na saúde e nas
emissões, como diminuir o consumo de carne, onde hoje ele é excessivo, e
inserir na dieta outros itens menos intensivos na emissão de gases de
efeito estufa.
Agência FAPESP – Além de mudanças em nível de políticas públicas, são necessárias também ações individuais? O que cada cidadão pode fazer?
Bustamante – O cidadão tem um poder de escolha importante como
consumidor na definição do tipo de indústria que queremos. É preciso
conhecer aquilo que você consome e o impacto que isso tem. Favorecer
transporte coletivo em detrimento do individual. Mas, em algumas áreas, a
decisão individual sofre uma influência muito grande do poder público.
As pessoas podem optar pelo transporte coletivo, mas essa opção precisa
estar disponível, ter qualidade e segurança. São dois elos que devem
estar fortemente encadeados. A economia de energia que fazemos em casa e
no trabalho deve acontecer independentemente de uma ameaça de
racionamento. A responsabilidade na utilização dos recursos é de todos e
os recursos são limitados. No relatório há uma ênfase grande na questão
do comportamento humano e nos sistemas de informação. Discutimos de que
forma podemos informar as pessoas de que suas opções de consumo
individuais têm um impacto coletivo significativo e de que forma devemos
trabalhar questões culturais também relevantes. O relatório traz
questões prementes associadas à equidade e à ética no processo de tomada
de decisão. A decisão tomada hoje tem um impacto sobre as gerações
futuras. Podemos assumir essa conta hoje e já começar a pagá-la ou
deixar para pagar mais para frente, só que ficará mais caro. São
questões que envolvem o princípio da filosofia moral, como trabalhar a
equidade entre os países e, dentro dos países, a equidade entre os
grupos sociais
Agência FAPESP – Quais setores da economia serão os mais afetados pela redução do consumo e demais custos da mitigação?
Bustamante – Existe ainda muita incerteza em relação a isso
porque estamos falando de números globais. Essa é uma das limitações do
relatório, não há como fazer uma avaliação específica para um país ou
região. Caberá agora aos países, de posse da informação mais geral,
fazer uma estimativa própria. Há um custo de implementar essas medidas
de mitigação, mas, por outro lado, as mudanças trazem uma série de
benefícios adicionais que têm de ser computados nessa conta. Pode haver
melhoria da qualidade de vida pela redução da poluição atmosférica e
distribuição de recursos de forma mais eficiente para as pessoas. É
preciso considerar que vivemos em um mundo ainda muito desigual. Há
países que já atingiram bom patamar de desenvolvimento e bem-estar
humano e outros que ainda buscam atingir os patamares mais básicos de
bem-estar. Esses países que hoje constroem sua infraestrutura e estão
elaborando seus projetos de desenvolvimento devem optar por rotas que
tenham em si o contexto do desenvolvimento sustentável. O interessante
seria que eles não deixassem de se desenvolver, mas já buscassem
alternativas menos intensivas em termos de emissão de carbono.
Agência FAPESP – O Brasil não está na contramão dessa proposta com os investimentos em exploração de petróleo e termelétricas?
Bustamante – O Ministério da Ciência e Tecnologia publicou no ano
passado um relatório com as estimativas das emissões brasileiras. É
possível observar que houve uma mudança no perfil da emissões
brasileiras em comparação com 2005, quando eram fortemente determinadas
pelo desmatamento e pela agricultura. Em 2010, a produção de energia e a
agricultura passaram a ser setores majoritários nas emissões
brasileiras. A situação recente do país mostra a necessidade de
investimentos urgentes para diversificar as fontes de energia.
Agência FAPESP – Na sua opinião, o Brasil deveria investir mais em bioenergia?
Bustamante – Sim, e também deveria investir no aumento de sua eficiência energética e na diversificação das fontes de energia.
Agência FAPESP – O documento divulgado neste domingo deverá
embasar as negociações de um novo acordo climático que vai substituir o
Protocolo de Kyoto, certo?
Bustamante – Como o sumário é aprovado pela plenária da ONU, da
qual os governos fazem parte, passa a ser um instrumento da negociação
internacional. Então essas mensagens deverão subsidiar o processo de
negociação de clima em 2014 e 2015, para tentar chegar a um novo acordo
que entrará em vigor em 2020. Esse relatório, portanto, chega num
momento crucial. A sociedade precisa se preparar para os impactos que
virão. Ainda que adotemos agora as ações de mitigação, os impactos
continuarão acontecendo. Daí a importância da adaptação.
Agência FAPESP – A senhora acredita que todos os países estão prontos para assumir um compromisso global de redução de emissões?
Bustamante – Pelo sistema da ONU, no qual há necessidade de um
acordo global definido por consenso, é sempre muito difícil. Trabalhamos
com realidades e sistemas políticos muito diferentes. Um acordo global é
necessário; por outro lado, temos observado um aumento das iniciativas
regionais e binacionais. Começam a acontecer ações que não
necessariamente estão sob um chapéu de um acordo global, mas podem
favorecer muito as ações de mitigação também. É inegável, no entanto,
que todos os países terão de aportar suas contribuições. O que não pode
acontecer é chegar a 2020 acreditando que teremos mais 20 anos para
começar a agir. A tomada de decisão rápida é fundamental.
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