Por Fábio de Castro, do Rio de Janeiro
Agência FAPESP – Depois de concluir que é preciso reinaugurar a
relação entre a ciência e a sociedade para viabilizar as ações
necessárias para a sustentabilidade global, a comunidade científica
internacional se deu conta de que já foi dado o primeiro passo nessa
direção.
A ciência para a sustentabilidade, um novo paradigma do conhecimento,
já está sendo construída, segundo Lidia Brito, diretora da divisão de
Políticas Científicas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco).
Ex-ministra da Ciência de Moçambique, Brito participa no Rio de Janeiro do “Forum on Science, Technology and Innovation for Sustainable Development”, que ocorre até sexta-feira (15/06).
O evento de cinco dias tem o objetivo de debater uma nova agenda
científica internacional para o período que se seguirá à Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (RIO+20) – que será
realizada também na capital fluminense entre 13 e 22 de junho.
O fórum é organizado pelo Conselho Internacional para a Ciência
(ICSU, na sigla em inglês), em parceria com Unesco, a Federação Mundial
das Organizações de Engenharia (WFEO), o Conselho Internacional de
Ciências Sociais (ISSC), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC).
As discussões no fórum estão alinhadas com a Declaração sobre o
Estado do Planeta, documento que sintetizou o resultado dos debates da
reunião Planet Under Pressure, copresidida por Brito, em Londres
(Inglaterra), onde mais de 3 mil cientistas envolvidos com diversos
temas socioambientais discutiram qual seria a posição da comunidade
científica internacional na RIO+20.
Uma das principais conclusões da declaração é que o sistema terrestre
tem limites para sua exploração e os atuais níveis de pressão nesse
sistema poderão levar a uma emergência humanitária de escala global, com
a intensificação das crises sociais, econômicas e ambientais.
A superação desses problemas exigirá um novo pacto entre a ciência e a
sociedade, com maior conectividade entre as lideranças de todos os
setores, e, de acordo com Brito, essa mudança já está em andamento.
Em entrevista à Agência FAPESP, Brito falou sobre o novo
paradigma para a sustentabilidade global, que requer um cientista cada
vez mais multidisciplinar e mais participativo na sociedade. Explicou
ainda por que rejeita a expressão “economia verde” e defendeu que o PIB é
insuficiente para medir o sucesso do desenvolvimento de um país.
Agência FAPESP – A comunidade científica chega à RIO+20 com uma mensagem clara para a sociedade?
Lidia Brito – Há uma posição clara e algumas mensagens. Uma das
grandes conclusões da comunidade científica do planeta é que entramos em
uma nova era, o Antropoceno. Uma era em que o homem é a maior força a
conduzir os destinos do planeta. Portanto, há uma nova responsabilidade
do ponto de vista da humanidade em relação ao planeta. Outra conclusão é
que o Antropoceno é uma era de interconexões, na qual tudo está
interligado. Essa interconexão também ocorre em um ponto crítico, que
são as fronteiras planetárias. Nas mudanças que introduzimos no sistema
planetário, estamos a atingir essas fronteiras interligadas. Não é só o
aumento da temperatura isoladamente, nem a acidificação dos oceanos, nem
a perda da biodiversidade de forma individual, mas é como tudo isso
está ligado.
Agência FAPESP – É correto dizer que essa mesma profusão de
interconexões que gera os problemas globais também proporciona
oportunidades para lidar com eles?
Lidia Brito – Sim. Essa interconexão profunda é um risco, porque o
que quer que seja que façamos para empurrar uma dessas fronteiras, a
fim de manter seu nível de estabilidade, irá criar instabilidade e
incertezas em todas as outras fronteiras. Mas temos também que ver essa
sociedade e esse sistema planetário interconectados como uma
oportunidade inédita que nos é oferecida. Porque a mudança é mais
rápida. Ideias e soluções que podem nos levar para uma zona de maior
estabilidade são mais viáveis, porque tudo está ligado. Isso, por outro
lado, faz com que a ciência tenha que mudar. Esse é um grande desafio
que temos pela frente.
Agência FAPESP – O que o cientista precisa mudar em sua atitude e seu modo de trabalhar, tanto individualmente como coletivamente?
Lidia Brito – Individualmente, o cientista tem que entender que
já não é suficiente trabalhar apenas na zona de conforto de sua
disciplina, mas que é necessário se ligar com outras áreas de ciência, a
outros sistemas de conhecimento, para que juntos novas soluções possam
aparecer. São soluções às vezes até enraizadas em conhecimento já
existente, mas só o fato de trazer outras disciplinas, outras formas de
estar nas ciências, outras metodologias, outras perspectivas, dá um
campo diferente para encontrar soluções.
Agência FAPESP – É preciso refletir a interconectividade no interior da própria atividade científica?
Lidia Brito – Sim, exatamente, com multidisciplinaridade e até
mesmo transdisciplinaridade. Usar inclusivamente metodologias de outras
áreas de ciência para nosso próprio campo científico. Isso é um desafio
importante para o cientista da atualidade: abrir-se a outras
comunidades, a outros colegas e outras áreas de ciência. Em nível global
coletivo, da ciência como uma comunidade planetária, não só devemos
trabalhar juntos nas diferentes perspectivas do conhecimento, mas
principalmente engajarmo-nos em uma interação muito mais aberta com a
sociedade e os tomadores de decisão – em nível do governo, do setor
privado e da sociedade civil – para codesenhar e coproduzir essas
soluções que são necessárias para uma sustentabilidade global.
Agência FAPESP – O cientista precisa aumentar seu poder de
influência para ser capaz de trazer subsídios científicos para os
processos decisórios?
Lidia Brito – Claro. Para isso é preciso interagir de uma forma
que essas outras comunidades não se sintam fora da decisão ou do desenho
daquilo que é a questão científica. O cientista não deve ditar soluções
unilateralmente com base em seu conhecimento, ou não atingirá a
sociedade. Seu verdadeiro papel na atualidade é dizer quais são as
questões que enfrentamos como humanidade e como nós todos – comunidade
científica, gestores políticos, setor privado, sociedade civil – vamos
encontrar juntos soluções com base científica para essas questões que
afligem a todos nós.
Agência FAPESP – Isso será um processo longo?
Lidia Brito – Acho que é uma questão que demanda urgência. Não
podemos esperar muito tempo para fazer essa mudança. O que foi bom em
todo esse processo é que já temos uma iniciativa, o Future of Earth, que procura, da parte da comunidade científica em nível global, trazer todas as ciências e os stakeholders
– os intervenientes do processo de desenvolvimento sustentável – para a
mesa, a fim de definir quais são as questões que temos que investigar e
juntos vamos conseguir fazer isso. É um momento interessante, porque
está a haver como que um rearranjo da governança científica e da forma
como nós olhamos fazer ciência, que está claramente na mesa e está
claramente a influir. E penso que é emblemático que isto esteja a
acontecer de novo no Rio de Janeiro. Porque em 1992 houve uma mudança
drástica, que, acredito, ocorre mais uma vez em 2012. A comunidade
científica está a trazer para a RIO+20 sua convicção em dizer: já
percebemos o que é preciso mudar, vamos todos mudar juntos. É isso que
trazemos para a mesa na Conferência.
Agência FAPESP – Fala-se também de tecnologia nesse fórum.
Muitas vezes há uma impressão distorcida do papel da tecnologia, como se
ela tivesse a função de fornecer soluções para que se possa manter o
chamado cenário business as usual, isto é, seguir no mesmo padrão de consumo, produção e pressão ambiental atual. Como contornar essa distorção?
Lidia Brito – Simplesmente não podemos manter esses padrões. Está
fora de questão. A tecnologia tem um papel enorme nesse processo e
desenvolvimento sustentável. Mas, por si própria, a tecnologia não dá
conta. Ela tem que ser acompanhada por uma transformação social e uma
consciência e um compromisso social de que temos que trazer a
sustentabilidade global como algo que tem que fazer parte do nosso
próprio tecido. Em cada dia, em cada ação que tomamos, a
sustentabilidade global precisa estar presente. O que faz diferença,
talvez, é esse termo “global”. Nem norte nem sul, nem rico nem pobre.
Todos nós. Tem que estar no tecido de nossas nações e do nosso
comportamento individual e coletivo. Só assim poderemos aspirar a um
mundo mais estável.
Agência FAPESP – A consciência dessa centralidade do desenvolvimento sustentável está arraigada até que ponto na comunidade científica?
Lidia Brito – A Unesco, quando publicou o Relatório da Ciência em
2010, já tinha mostrado que havia uma mudança efetiva no cenário da
comunidade cientifica. O que vemos, objetivamente, é muito mais
colaboração internacional, muito mais ciência interdisciplinar.
Acreditamos que já inclusivamente estamos em uma mudança de paradigmas. A
ciência para a sustentabilidade global é o novo paradigma da ciência.
Agência FAPESP – Então a ciência para a sustentabilidade
global não é apenas uma aspiração dos pesquisadores, mas uma nova
realidade que começa a tomar forma?
Lidia Brito – É algo que está a permear as várias escolas e
vários níveis da produção de conhecimento e de ciência. Um exemplo disso
é a iniciativa Future of Earth, que é um comprometimento da
comunidade científica de que vamos trabalhar juntos nas varias áreas de
saber. É também um compromisso daqueles que apoiam a pesquisa global: os
financiadores da pesquisa estão conosco nesse comprometimento. Estamos
prontos para fazer outro tipo de ciência que responde melhor aos
desafios globais. Agora, há muita coisa a fazer. E um dos grandes
desafios é garantir que não haja exclusões nesses processos. Parte desse
movimento consiste em criar capacidade científica em países que não a
têm. E o Brasil é um país que claramente tem um papel enorme nisso.
Agência FAPESP – Por quê?
Lidia Brito – Porque vocês conseguiram criar a vossa capacidade
científica nas várias áreas do saber. O Brasil tem experiências nessa
coprodução, nessa multidisciplinaridade na abordagem da ciência para o
desenvolvimento sustentável. O Brasil pode ser um modelo para o
estabelecimento de metas nesse contexto. É um país que mostrou muita
capacidade de trazer juntas as redes do conhecimento. Em muitos aspectos
vocês estão na dianteira, é simbólico que estejamos discutindo isso no
Rio de Janeiro.
Agência FAPESP – Vários pesquisadores brasileiros que temos
entrevistado têm demonstrado certo ceticismo em relação à chamada
“economia verde”. Qual resposta se pode dar a eles?
Lidia Brito – Para ser honesta, nós na Unesco não falamos em
economia verde. Falamos de sociedade verde. Penso que o ceticismo dos
investigadores vem daí: a discussão não é sobre economia. O que temos
certeza é que, no Antropoceno, não é possível falar apenas de um dos
blocos do desenvolvimento sustentável. A economia não pode ser discutida
sem as questões sociais, culturais e ambientais. Elas estão
interligadas e não podem ser tratadas de forma independente. Fico
satisfeita com os cientistas brasileiros, que não querem falar apenas em
economia. Temos que falar em sociedade verde, para destacar essa força
de mudança.
Agência FAPESP – A senhora é a favor de abandonar o conceito de PIB e criar outras medidas de prosperidade?
Lidia Brito – Claramente não podemos ter só o PIB como medida de
sucesso de uma sociedade. O PIB é muito restrito, não mede inclusão
social, nem a harmonia entre homem e natureza, não mede o bem-estar das
pessoas, nem a equidade. Temos que ter outras medidas. Por isso, nas
conclusões do Planet under Pressure, dissemos: usem a comunidade
cientifica para definir outras metas. Para desenvolver modelos de medida
integrada da economia, sociedade e ambiente. Sim, sou uma das
defensoras de que precisa haver outras medidas de sucesso de um país que
considerem o desenvolvimento sustentável em todos seus pilares.
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