Por Elton Alisson
Agência FAPESP – As mulheres e meninas representam atualmente
72% do total de pessoas que vivem em condições de extrema pobreza no
mundo. Em função disso e da combinação de uma série de outros fatores
socioeconômicos e culturais, elas representam hoje as maiores vítimas de
desastres provocados por eventos climáticos extremos, como inundações e
furacões.
Os dados foram apresentados pela médica e antropóloga mexicana Úrsula Oswald Spring durante o workshop “Gestão dos riscos dos extremos climáticos e desastres na América do Sul – O que podemos aprender com o Relatório Especial do IPCC sobre os extremos?”, realizado em agosto pela FAPESP, em São Paulo.
Professora da Universidade Nacional Autônoma do México, a
pesquisadora mexicana, que é membro do IPCC, explica em entrevista
concedida à Agência FAPESP as razões e quais ações são
necessárias para diminuir a vulnerabilidade das mulheres e meninas aos
impactos das mudanças climáticas.
Agência FAPESP – Quais são os grupos humanos mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas globais?
Úrsula Oswald Spring – Primeiro, as mulheres e meninas. Em
segundo lugar, os grupos indígenas refugiados em comunidades com línguas
e culturas diferentes das suas. E em terceiro todas as pessoas que
vivem em cidades em pobreza extrema, em zonas de alto risco e de
violência, sem apoio governamental, ilegais, sem emprego e expostas às
intempéries climáticas. Coincidentemente, esses três grupos humanos
também são os mais discriminados. Há um problema de discriminação
estrutural e uma combinação catastrófica de fatores socioeconômicos,
ambientais e culturais que potencializam as vulnerabilidades desses três
grupos humanos aos impactos das mudanças climáticas.
Agência FAPESP – O que torna as mulheres e meninas mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas?
Úrsula Oswald Spring – Mundialmente, elas representam 72% dos
pobres extremos e, sem recursos financeiros, é muito difícil enfrentar
os impactos dos eventos climáticos extremos. Além disso, as mulheres
foram educadas a cuidar dos outros e, por isso, assumimos o papel de
“mãe de todos”. Esse processo, que chamo de teoria das representações
sociais, também nos torna mais vulneráveis, porque temos o papel de
proteger primeiramente os outros, para depois nos preocuparmos conosco.
Por trás de tudo isso também persiste há milhares de anos um sistema
político excludente, reforçado por todas as crenças religiosas,
denominado sistema patriarcal, que preceitua a autoridade de um ser – o
homem –, resultando em muita violência, exclusão e discriminação contra
as mulheres. O capitalismo, por sua vez, se aproveitou do sistema
patriarcal e construiu um sistema vertical, excludente, autoritário e
violento, que permitiu que hoje 1,2 mil homens comandem a metade de todo
o planeta e que as mulheres tivessem pouco poder de decisão e de veto
em questões que lhes afetam diretamente.
Agência FAPESP – Diante desta realidade, o que é
preciso fazer para diminuir a vulnerabilidade das mulheres e meninas aos
impactos dos eventos climáticos extremos?
Úrsula Oswald Spring – Não vale a pena destruir, por exemplo,
essa capacidade das mulheres em querer ser a mãe de todos. Mas é
necessário treiná-las para que esse processo de cuidar dos outros seja
mais eficiente e que não seja realizado ao custo de sua própria vida,
mas que possa beneficiar todo um conjunto de pessoas, incluindo ela e
suas filhas. E isto implica em mais condições para que possam ter maior
poder de decisão.
Agência FAPESP – Como seria possível realizar esse processo?
Úrsula Oswald Spring – Sobretudo, possibilitando o maior acesso
das mulheres à educação. De acordo com o Banco Mundial, todo país
islâmico que investe na educação de suas mulheres aumenta imediatamente
1% de seu PIB. Outra ação é dar mais visibilidade ao trabalho das
mulheres, que muitas vezes não é valorizado. Nos Estados Unidos o
trabalho feminino representa 38% do PIB. É preciso dar visibilidade a
essa participação econômica das mulheres. Alem disso, são necessárias
leis que garantam maior equidade e participação das mulheres em todos os
processos decisórios. Teríamos que usar sistemas de cotas para mulheres
para reverter a discriminação, que seria um passo para garantir maior
equidade. Desgraçadamente, as catástrofes e os desastres provocados
pelos eventos climáticos extremos irão ajudar no processo de dar maior
poder às mulheres.
Agência FAPESP – De que maneira?
Úrsula Oswald Spring – No México, por exemplo, a produção
campesina está nas mãos dos homens. Mas está passando para as mãos das
mulheres, porque os homens migraram para os Estados Unidos em busca de
emprego. Na nova condição de chefes de família, elas estão tendo que
tomar decisões sobre as mais variadas questões. Nós precisamos ajudá-las
nesse processo de “empoderamento”, possibilitando que elas tenham
acesso a tecnologias sustentáveis, que lhes permitam, por exemplo, se
proteger dos riscos de desastres causados pelos eventos climáticos
extremos.
Agência FAPESP – Além da questão do “empoderamento”,
que é um processo que demanda longo prazo, que ações mais urgentes
devem ser tomadas para preparar as mulheres para enfrentar os eventos
climáticos extremos?
Úrsula Oswald Spring – É preciso possibilitar e treinar as
mulheres para que em um momento de perigo iminente, por exemplo, elas
tenham o direito de sair de casa. Muitas comunidades proíbem que uma
mulher saia de casa se não está acompanhada por um homem. Isso é uma
discriminação e uma forma de controle que é preciso superar com leis de
equidade de gênero. Além disso, é preciso treinar mulheres para aprender
a nadar, a correr, a trepar em uma árvore, e permitir que possam usar
uma roupa mais adequada para realizar essas atividades. Eu assisti os
Jogos Olímpicos de Londres e me chamou a atenção a vestimenta das
atletas da natação e de corrida da Arábia Saudita. Apesar de estarem
vestidas de forma diferente das atletas de outros países, ao menos elas
vestiam uma calça que lhes permitia correr, sem infringir os códigos
religiosos. Esse é um tipo de ação que poderíamos socializar. Poderíamos
aproveitar os Jogos Olímpicos para promover em todos os países
islâmicos esse tipo de ação, e dar cursos de natação e de corrida para
as mulheres.
Agência FAPESP – Dentre os três grupos humanos que a
senhora aponta como os mais vulneráveis aos impactos das mudanças
climáticas, qual apresenta maior resiliência?
Úrsula Oswald Spring – Só os indígenas têm a capacidade adquirida
ao longo de milhares de anos de administrar situações muito difíceis
sem contar com ajuda internacional, nacional ou estatal, mas sim
sozinhos. Eles se adaptaram às mudanças climáticas e cultivaram durante
milhares de anos e da mesma maneira vegetais, como batatas, resistentes à
seca, ao frio e ao calor, e desenvolveram sistemas muito eficientes e
baratos de irrigação e fertilização da terra. É preciso aproveitar esses
conhecimentos tradicionais e vinculá-los às tecnologias modernas para
nos adaptarmos às mudanças climáticas. Mas estamos perdendo esses
conhecimentos tradicionais porque a última geração de indígenas que
ainda detêm esses conhecimentos, que são jovens, já passou pela escola,
fala outras línguas que não a materna e está perdendo sua cultura
indígena. Se não fizermos nada, vamos perder mundialmente esses
conhecimentos tradicionais que permitiriam desenvolver soluções locais
para enfrentar as mudanças climáticas.
Agência FAPESP – Que iniciativas existem hoje para promover essa aproximação de conhecimentos tradicionais com os científicos?
Úrsula Oswald Spring – No México, por exemplo, foi criada a
Universidade Campesina do Sul. Lá são integrados grupos locais, que são
constituídos hoje basicamente por mulheres – há 20 anos eram formados,
em sua maioria, por homens –, e com base nas necessidades desses grupos
nós disseminamos um processo de educação baseado no método de Paulo
Freire, em que eles aprendem a partir de sua própria realidade.
Agência FAPESP – O que é ensinado na Universidade Campesina do Sul?
Úrsula Oswald Spring – Um dos temas com os quais trabalhamos é
agricultura orgânica, ensinando as mulheres a trabalhar com hortas
familiares, para garantir seus próprios alimentos e de sua família.
Outro tema é o manejo de água. Há muita água não potável, como a
utilizada para lavar as mãos, por exemplo, que é muito fácil de tratar e
que pode ser utilizada junto com dejetos orgânicos de sanitários secos
como melhoradores de solo para ajudar a recuperar a fertilidade natural
do solo. Outro tema ao qual temos nos dedicado é o da medicina
alternativa. A medicina moderna é muito cara e a maior parte das pessoas
não tem recursos para utilizar o sistema de saúde. Em função disso,
estamos criando modos de integrar a medicina tradicional mexicana, que
utiliza ervas e métodos tradicionais de cura, como vapores, com a
medicina moderna. É um conjunto de ações voltadas para potencializar o
uso dos conhecimentos científico e tradicional e tentar buscar soluções
para enfrentar coletivamente problemas das mais variadas ordens, como o
das mudanças climáticas. Porque não são grandes obras que protegem as
pessoas de uma catástrofe provocada por um evento climático extremo,
como uma inundação, mas sim pequenas obras, contanto que sejam muito
eficientes.
Agência FAPESP – Na opinião da senhora, como será
possível enfrentar os riscos das mudanças climáticas em escala mundial,
em um momento em que diversos países passam por graves crises econômicas
e têm problemas mais urgentes para resolver?
Úrsula Oswald Spring – Há condições de grande incerteza em
relação às mudanças climáticas porque, além das crises econômicas,
grande parte das pessoas no mundo nunca presenciou uma situação de
desastre causado por um evento climático extremo. Mas se algumas pessoas
ainda não passaram por uma situação dessas, é preciso justamente pensar
em maneiras de se preparar para enfrentar os eventos climáticos
extremos, que ocorrerão com maior frequência nos próximos anos. E uma
das formas de se fazer isso é descentralizando a gestão dos riscos das
mudanças climáticas, levando em contas as condições próprias de cada
região. O problema climático na Amazônia, por exemplo, não é o mesmo que
ocorre na parte alta dos Andes. Os tipos de manejos nessas regiões são
muito diferentes. Por isso, os países precisam descentralizar as ações. A
gestão dos riscos de mudanças climáticas pelos países irá depender de
uma boa gestão local. Os primeiros 10 minutos de uma situação de risco,
como uma inundação ou deslizamento, são cruciais e não há ajuda
internacional que possa socorrer. Por isso, é preciso investir
fortemente em prevenção e treinamento em nível local para enfrentar os
riscos de um evento climático extremo.
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